Pouco após as 10h, o caminhão estaciona na Glória, Zona Sul do Rio. Minutos depois, a fila se forma. É que já havia gente esperando o veículo, que recolhe ossos e pelancas de supermercados da cidade. Sensibilizados, motorista e ajudante da empresa doam ali toda terça e quinta parte do que foi recolhido. Diante do desemprego — que ficou em 14,1% no segundo trimestre de 2021, atingindo 14,4 milhões de brasileiros — e da inflação galopante — que com a prévia deste mês chegou a 10,05% no acumulado em 12 meses, ultrapassando os dois dígitos pela primeira vez desde fevereiro de 2016 —, é a esperança daquelas pessoas de encontrarem um pedaço de carne para matar a fome.
Uma vez por semana, a desempregada Vanessa Avelino de Souza, de 48 anos, que mora nas ruas do Rio, caminha até o ponto de distribuição. Com paciência, separa pelanca por pelanca, osso por osso em busca de algo melhor para pôr na sacola. — A gente limpa e separa o resto de carne. Com o osso, fazemos sopa, colocamos no arroz, no feijão... Depois de fritar, guardamos a gordura e usamos para fazer a comida — explica Vanessa, que lamenta não conviver com os cinco filhos.— Não tenho como cuidar deles. Por isso, eles são criados pela minha mãe. Não temos quase nada. O que temos é de doações. Lá, pelo menos, eles têm um pouco de dignidade.
Na fila da fome, Vanessa não está só. Outras mulheres, homens e jovens se amontoam em busca do restolho da carne e dos ossos. A pobreza extrema, que leva pessoas a garimpar restos, foi acentuada no Brasil durante a pandemia de Covid-19. Levantamento da Rede Brasileira de Pesquisas em Segurança Alimentar e Nutricional mostrou que mais de 116,8 milhões de pessoas vivem hoje sem acesso pleno e permanente a alimentos. Dessas, 19,1 milhões (9% da população) passam fome, vivendo “quadro de insegurança alimentar grave”. Os números revelam um aumento de 54% no número de pessoas que sofrem com a escassez de alimentos se comparado a 2018.
Mãe de 5 e avó de 12, Denise da Silva, de 51 anos, ficou viúva recentemente. Agora, está sozinha na luta para alimentar a família. Duas vezes por semana, sai de São João de Meriti, na Baixada, onde mora, em busca das pelancas. De trem, percorre quase 33km até a Central. Sem poder pagar outra passagem, caminha outros 3km até a Glória. — Não vejo um pedaço de carne há muito tempo, desde que a pandemia começou. Esse osso é a nossa mistura. Levamos para casa e fazemos para os meninos comerem. Sou muito grata por ter isso aqui — conta.
Irmã de Denise, a desempregada Sheila Fernandes da Silva, de 43 anos, também busca restos de carne. Ela mora numa ocupação no Centro do Rio e divide o que recolhe com o filho, que também não tem emprego. Dá apenas para dois dias: — Você não sabe a alegria quando o caminhão chega aqui. É a certeza que teremos algo diferente para dois dias.
A fome nossa de cada dia, triste rotina
Karlinca de Jesus, de 48 anos, é capixaba. Na esperança de dias melhores, veio para o Rio em 2018. Mas o sonho não se realizou e hoje ela vive com o companheiro na rua, no entorno do Monumento aos Pracinhas, no Aterro, perto de onde o caminhão da pelanca estaciona: — Pego aqui há uns seis meses às terças. É uma ajuda e tanto! Pego, levo e salgo. Durante a semana, vou fazendo para a gente. Na rua é tudo muito difícil. Várias vezes, a gente passa fome.
Luis Vander, de 39 anos, que mora nas calçadas da Glória, pega a sua parte enquanto ajuda a organizar a entrega. — Acho que umas dez pessoas comem do que levo — conta. Ontem, cerca de 12 pessoas recolhiam os ossos quando chegou Adailton da Silva, de 33 anos, com seu carrinho de mão. Era sua primeira vez. Os mais experientes o ajudaram a retirar sua parte: — Um rapaz me disse que aqui eles doam osso. Vou tentar tirar um pouco dessa carne e fritar. O restou vou fazer gordura. O óleo está muito caro.
"Pediam para o cachorro. Hoje, é para comer"
Nascido em Além Paraíba, interior de Minas Gerais, o motorista do caminhão, José Divino Santos, de 63 anos, conta que, nos últimos meses, aumentou o número pessoas pedindo ossos e restos de sebo. — Tem dias que chego aqui e tenho vontade de chorar. Um país tão rico não pode estar assim. É muito triste as pessoas passarem por essa situação. O meu coração dói. Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploraram por um pouco de ossada para fazer comida. Duas ou três pessoas em situação de rua passavam aqui e levavam. Hoje, tem dia que tem umas 15 pessoas – narra José Divino.
Ele lembra ainda que os restos seguem para uma fábrica no bairro Santa Rita, em Nova Iguaçu. Lá, parte do material vira ração para animais e a outra — a gordura — é utilizada para fazer sabão em barra. — Às vezes, está meio estragado, a gente fala, mas as pessoas querem assim mesmo — conta sem conter as lágrimas.