Todo morador de Maceió lembra do que estava fazendo no início da tarde de 3 de março de 2018, dia chuvoso de verão na capital alagoana, quando a terra balançou por três ou quatro segundos. Quem se encontrava nos arredores da Lagoa Mundaú relata ter ouvido um estrondo. Alguns imóveis racharam com o tremor de magnitude 2,5 na escala Richter, mas, em um primeiro momento, o evento geológico não fez vítimas e parecia não ter causado grandes consequências.
Três anos após aquele terremoto, porém, a cidade e seus moradores continuam vivenciando as consequências. Um afundamento do solo condenou bairros inteiros e segue provocando a remoção emergencial de milhares de famílias, num êxodo urbano que está abalando todo o mercado imobiliário local – e a vida da cidade.
Estudos do Serviço Geológico Brasileiro mostraram que o chão vinha cedendo em Maceió mesmo antes do tremor. Casas, prédios e ruas já haviam rachado por causa do colapso de cavernas subterrâneas de algumas das 35 minas de sal-gema que a petroquímica Braskem explorava no subsolo da área urbana da capital do estado.
A empresa, que tem como sócios a Odebrecht e a Petrobras, não admite oficialmente ter causado o problema, mas já concordou, na Justiça, em pagar mais de R$ 12 bilhões para indenização de moradores e comerciantes, realocação de escolas e hospitais e financiamento de ações que minimizem o drama causado pelo afundamento de bairros inteiros.
Entre os milhares de atingidos, no entanto, há enorme insatisfação com as soluções propostas pela empresa, e os mais resistentes se recusam a deixar áreas que se tornaram cenário de guerra, com construções semidestruídas, ruas vazias e o crescimento acelerado da população de gatos de rua – e de mosquitos.
Na área atingida, há risco de desabamento, segundo a Defesa Civil local. Essa região não tem solo estável, e as mudanças são registradas por sismógrafos e outros equipamentos instalados em vários locais da cidade. Além dos pontos críticos, há uma área de segurança em volta cuja ampliação já levou a quatro revisões do mapa de remoção de moradores desde 2019.
Inicialmente, foram removidos os habitantes do bairro de Mutange, na beira da lagoa. Hoje, segundo dados da prefeitura, cerca de 55 mil pessoas já tiveram de deixar suas casas, e o número deve continuar a subir. Os bairros de Bebedouro, Pinheiro, Bom Parto e parte do Farol foram incluídos na área de risco; e Flexal de Cima e de Baixo foram considerados afetados pela prefeitura por terem ficado isolados socialmente, sem acesso a comércio ou serviços públicos. O avanço do fenômeno também ameaça algumas vizinhanças que estão fora dos mapas.
As vítimas dessa tragédia que conversaram com o Metrópoles utilizaram muito a palavra afundamento como metáfora do que têm vivido. “Afunda nossa história, afundam nossas memórias, nossas relações”, repetem, desde os atingidos mais pobres até os moradores de condomínios fechados.
Bebedouro, um dos bairros mais afetados, faz parte da história da fundação de Maceió. Ali estão prédios tombados pelo patrimônio municipal e estadual, como o Asylo das Órphans Desvalidas de Nossa Senhora do Bom Conselho, construído em 1877 para as órfãs da Guerra do Paraguai e que funcionava como escola pública bem-conceituada até bairro ser condenado; e a Igreja de Santo Antônio de Pádua, inaugurada em 1873 com azulejos vindos de Portugal, onde o padre ainda resiste a fechar as portas, mas celebra missas em uma vizinhança praticamente sem moradores.
Perto dali, no Farol, o único hospital psiquiátrico público de Alagoas, o Portugal Ramalho, precisa se mudar com seus 160 pacientes internados e 395 funcionários, porque o prédio sexagenário pode não resistir a novos abalos no solo.
No bairro vizinho ao Mutange, o CSA, um dos clubes de futebol mais tradicionais do estado, teve de abandonar a casa que ocupou por 97 anos após ter fechado um acordo com a Braskem para a construção de um novo centro de treinamento em outra região.
Junto das perdas humanas e arquitetônicas, Maceió vê o afundamento dos bairros enfraquecer suas tradições culturais, os folguedos populares, como o coco de roda, cujos grupos minguaram após os integrantes se mudarem para longe uns dos outros.
“Esse tipo de manifestação cultural tem uma relação muito forte com o território, com a vizinhança, com a ancestralidade. Tirar as pessoas dali e ainda tirar os locais onde elas congregavam é condenar essa tradição”, avalia e lamenta a professora Adriana Guimarães, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Adriana faz parte de um grupo de pesquisa dedicado a tentar documentar esse patrimônio, que vai se perdendo à medida que o solo afunda e as águas da Lagoa Mundaú avançam sobre as ruas, enquanto operários da Braskem tentam selar parte das minas de sal-gema.
A tragédia, de certa forma, não poupa nem os mortos. Segundo técnicos da prefeitura, um dos locais de maior risco de dolinamento, que significa abertura de uma cratera e é uma das palavras do vocabulário da geologia que os alagoanos se acostumaram a ouvir nos últimos anos, é a área do Cemitério de Santo Antônio, em Bebedouro.
Os sepultamentos foram proibidos no local em outubro de 2020, e hoje nem a visitação é permitida. “É um cemitério muito antigo, vários mestres culturais estão enterrados lá”, explica Ronnie Mota, coordenador do órgão que a Prefeitura de Maceió criou para cuidar do afundamento dos bairros.
“Uma das coisas que a prefeitura está discutindo com a Braskem é a realocação dos restos mortais das pessoas enterradas nesse cemitério, até para devolver às famílias a dignidade de poder visitá-los em um lugar seguro”, completa o servidor, que trava com a empresa uma disputa por milhões de reais para reconstruir a infraestrutura da cidade afetada pelo afundamento, o que inclui até um braço do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos).
O sal-gema é um sal retirado de rochas e se forma no subsolo, a cerca de mil metros da superfície.
Ele pode ser usado normalmente na cozinha, como o sal rosa do Himalaia vendido em supermercados, que é sal-gema. No entanto, seu uso é importante em vários processos industriais. Para a Braskem, o resultado da mineração serve para produzir PVC e soda cáustica.
Grandes quantidades de sal-gema foram encontradas no subsolo de Maceió na década de 1960, e, em 1976, a empresa Salgema começou a cavar minas na região, com anuência das autoridades locais. Para chegar aos depósitos de sal, é preciso cavar até uma profundidade de, aproximadamente, mil metros.
A mineração na região só foi paralisada em março de 2019, após ter sido confirmada a relação com o afundamento.
Hoje, a Braskem importa sal-gema do Chile e de outras fontes para aproveitar o polo industrial que construiu em Marechal Deodoro, na grande Maceió. A empresa conseguiu, também, autorização para estudar a viabilidade de explorar outras minas na parte norte do estado, tendo se comprometido a ficar longe de áreas urbanas.
Ainda assim, moradores de cidades praianas com alto potencial turístico na região, como Ipioca, Paripueira e Barra de Santo Antônio, têm se mobilizado contra a possibilidade desse tipo de mineração, que já causou tantos problemas a Alagoas, avançar.
A empresa Salgema só passou a fazer parte da Braskem em 2002, quando a petroquímica foi criada em uma sociedade entre a construtora privada Odebrecht e a empresa pública Petrobras.
Um especialista que acompanhou de perto o desenrolar do afundamento do solo em Maceió foi o professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Abel Galindo Marques. Formado em engenharia civil, geotecnia e geologia, ele dividia seu tempo entre as aulas na universidade e o trabalho numa empresa de engenharia que atendia clientes com rachaduras em imóveis na área do bairro do Pinheiro.
“Eu conheço bem o solo de Maceió e comecei a lidar com esse problema das rachaduras em 2010. Desde então, vistoriei prédios e casas com rachaduras. Já se percebia um nível de afundamento”, relata ele em conversa com o Metrópoles.
Na época, quem lidava com esses problemas não desconfiava das 35 minas escavadas mil metros abaixo do solo da cidade. “Por volta de 2017, passei a achar que as rachaduras nos imóveis não tinham relação com problemas de terreno, comecei a observar rachaduras direto no solo, grandes. E as minas de sal-gema estavam ali, a algumas centenas de metros”, explica Marques.
“Veio então o tremor, em 2018, e cinco dias depois houve uma reunião no Conselho Regional de Engenharia que contava com cinco expositores, quatro defendendo que não tinha nada a ver com as minas e eu acusando a Braskem. Fui chamado de louco”, lembra ele, que viu, meses depois, o Serviço Geológico Brasileiro (CPRM) confirmar seus apontamentos.
Conhecedor dos relatórios feitos pela CPRM, o professor Abel Galindo Marques explica que o chão afundou em Maceió porque um número ainda hoje incerto de minas de sal-gema colapsou.
“O teto delas cedeu. Eu tive acesso a cálculos sobre a resistência das rochas mostrando que o diâmetro admissível para as minas seria 53 metros e o diâmetro de ruptura, 70 metros, mas eles fizeram minas com 100 metros ou mais de diâmetro, e muito próximas. Algumas se juntaram em buracos onde caberia o estádio do Maracanã”, detalha ele.
Segundo o professor, na área mais crítica, perto da lagoa, o solo chegou a afundar entre 1,5 metro e 2 metros. “E continua afundando em torno de 25 centímetros por ano. A previsão, segundo alguns relatórios, é de que possa afundar mais 3 ou 4 metros nas próximas décadas”, conta Marques.
Há a possibilidade, ainda segundo o professor, de se abrirem crateras no solo de uma hora para outra em cima das minas colapsadas.
Os locais que os maceioenses já se acostumaram a chamar de “bairros fantasmas” são cenário de uma acelerada degradação. Das casas abandonadas, os antigos moradores levaram portas, telhas, vidraças e tudo que pudesse ter algum valor.
Operários pagos pela Braskem passaram, então, a lacrar com concreto os imóveis, que agora pertencem à empresa. Esses remendos, entretanto, também precisaram ser rompidos para que a Vigilância Sanitária conseguisse combater as pragas que proliferaram nos locais abandonados, como o mosquito que transmite dengue, zika e chikungunya.
Em muros e paredes, ex-moradores exprimem sua dor por meio de pichações, protestos raivosos contra a Braskem e o poder público. Também há mensagens relembrando da época em que a vida cotidiana tomava aquelas ruas.